Eu
nunca consigo terminar nada do que começo, pois tudo se torna complicado a
partir daqui. Nada se desenrola com a mesma facilidade que costumava
antigamente e o vazio é o pior inimigo de nós, seres humanos. Afinal, é ele que
nos corrói aos poucos, fazendo com que fiquemos remoendo coisas de um passado
distante; coisas sem motivos para recordar; coisas que deveriam estar
enterradas – muito bem enterradas, diga-se de passagem – ficam vindo à tona na
minha mente e sem qualquer intervalo.
Descansar
de mim mesma tornou-se uma tarefa árdua. Procuro uma solução para o que me
deixa neurótica (ah, essa sociedade), mas quando penso... Qual é a solução que
busco? Seria viver uma vida vazia? Livre de emoções intensas? Não tenho ideia e
talvez seja por isso que estou aqui.
Bem
na verdade começo a pensar que talvez seja necessário um manual para reaprender
a viver.
Ninguém
gosta que isso seja tão complicado, mas – depois de certo tempo – tudo se perde
no infinito deserto das lembranças. E a areia não cobre os verdadeiros
“tesouros”. Cave um pouco e você verá que deveria ter feito uma cova de sete
palmos se o seu desejo era enterrar o lhe afligia.
Eu me sentia desgastada e estava começando,
literalmente, a enlouquecer com o que estava (está ainda) acontecendo.
Um
grito mudo – sufocado – na minha garganta não me deixava respirar e eu, assim
como todos os seres vivos, necessito de gás oxigênio no sangue. O problema é
que eles não me deixavam respirar; não me deixavam pensar; não me deixavam
agir. Enquanto eu planejava a minha fuga dessa jaula invisível, eles
aperfeiçoavam suas técnicas de aprisionamento.
De
fato, como tudo, começou em perfeito estado. Comigo não foi diferente, mas com
a consciência e o tempo, degringolou. Não resisti às verdades e de certa forma
me orgulho por isso; orgulho-me por não ser mais uma peça pré-fabricada. Toda a
“verdade” que nos rodeia não é substancialmente verdadeira, nós é que
enfeitamo-la um pouco, tornando-a aceitável para a maioria.
Sim.
Mesmo quando queremos contar a verdade findamos por mentir, omitindo – ou
transformando – aquilo que realmente traria diferença. E por quê?
Essa
é uma pergunta que ainda não sou capaz de responder. Sejamos sinceros: somos
todos egoístas e mentirosos. Eis aí algo que posso afirmar com toda certeza.
No
entanto, está no juízo de cada um tornar-se ou não um bom mentiroso. Não
podemos confiar nem em nós mesmos, pois mentimos para o nosso “eu”
constantemente com a finalidade de amenizarmos situações desagradáveis.
E essa técnica? Realmente funciona?
Estou
tentando usá-la há tempos, mas nunca consegui resultados muito bons. Uma pena.
Por que será que é tão mais fácil vivermos, e convivermos, na sombra da
mentira?
Quando
um de meus maiores desejos é de ir para o sol e deixar que todos os seus raios,
toda sua luminosidade penetre a minha pele. Quero me sentir libertada de todos
os males; quero poder chorar lendo um simples livro sem ser tachada de ridícula
e quero sim tomar um banho de chuva quando sentir vontade.
Isso
é incorreto?
Começo
a pensar que sim. Essa maldita sociedade que tenta nos moldar à seu modo sem
nos deixar o livre arbítrio.
Conceber
essas verdades, mesmo que intima e secretamente, faz com que o nó comece
finalmente a derreter de minha garganta, deslizando como elegantes bailarinas.
Eu
sei, eu sei. Nada disso faz sentido, mas quem lhes disse que precisava haver
nexo nisso tudo?
Trata-se
de pensamentos soltos no papel e os “vocês” referem-se a mim mesma, aos meus
próprios pensamentos. Eu tenho ao menos
o direito de me expressar?
Sim?
Se sim, obrigada.
Respostas
prontas ficam acumuladas como saliva dentro da nossa boca e o pior é que quanto
mais tento me livrar delas, reformulando novas respostas, mais elas se apegam a
mim. E não vai demorar muito para quererem controlar até mesmo quantas batidas
o nosso coração estará “liberado” para dar a cada minuto ou quantas vezes
poderemos expirar e inspirar por hora.
A
questão é que ainda não compreendi o motivo pelo qual estou registrando esses
pensamentos “vomitados” de forma caótica sobre o papel; “Menina do nanquim ou
insana do divã?”, minha avó me indagou certa feita e eu não soube o que
responder.
Deveria
dizer meu nome? Caso eu resolva falar, digo o verdadeiro ou crio um pseudônimo?
Criando um pseudônimo caio na minha teia, naquela hora em que afirmo querer
fugir das sombras da mentira. Humpf! Está certo. Sou Alice, mas qual é a
importância de um nome? Ele não vai me definir ou definir minhas ações.
Ações...
Há tantas coisas que gostaria de ter feito diferente, mas há outras tantas que
sei que faria igual e, mesmo assim, se eu não tivesse feito nada do que fiz nos
últimos anos, certamente não estaria quem sou hoje.
Provavelmente,
seria mais uma dessas pessoas vazias que não pensam em nada além de si mesmas e
outras futilidades, mas também não precisaria estar aqui agora. Talvez eu fosse
feliz, mesmo sendo uma felicidade falsa e superficial.
-
Alice?
Caralho!
Quem é a jumenta que está interrompendo minha linha de raciocínio?!
-
Sim?
-
Pode entrar. A Dra. Narcisa já está disponível e aguarda por você – a
secretária sorri largamente.
- Ah
sim, obrigada – retribuo o sorriso.
Prestes
a entrar na sala de uma das pessoas mais odiosas que conheço: minha psiquiatra.
Ela é um exemplo perfeito da futilidade humana, pois é uma criatura que odeia a
profissão e desestimula os pacientes. Bem sei que ela quis tornar-se psiquiatra
apenas para que pudesse ter o título de “Doutora” e sempre recebendo as pessoas
com seu sorrisinho falso e nojento. Eis aqui um exemplo em que o nome determina
a pessoa: “Narcisa”. É isso que ela é, uma porra de uma narcisista nojenta que
pensa ser superior a todo o restante do planeta só porque possui PhD em
Psiquiatria.
E lá
vem ela de braços abertos e com seu maldito sorriso me receber. Como eu queria
a ver sorrir com todos os dentes quebrados. Só venho até esse inferno – duas
vezes por semana – porque meus pais me obrigam e não apenas meus pais, assim
como toda minha família. Eles pensam que eu tenho graves problemas mentais.
-
Olá Ali, como foram seus últimos dias?
-
Pra começo de conversa, não quero lhe falar sobre como foram os meus dias e não
me chame de “Ali”; não lhe dei intimidade para tanto.
-
Lamento se a ofendi, mas você sabe que meu dever é ajudar quem precisa...
-
Por isso mesmo. Você “ajuda” necessitados e como eu não sou uma “necessitada”,
então, por favor, Doutora, me poupe de seus discursos sem fundamento.
-
Mas...
-
Por favor, sente-se e finja fazer algo de construtivo enquanto eu como seus
biscoitos amanteigados.
- Eu
tenho outra opção?
-
Óbvio! Nós sempre temos outras opções. Que pergunta mais imbecil. Tsc, e isso
que você é PhD enquanto eu sou apenas uma pirralha de dezesseis anos que está
no terceiro ano do ensino médio. Esses biscoitos são realmente muito bons! –
Narcisa me observa espantada. Normal, essa é sempre a reação dela – E isso que
eu não acrescentei que estudo em escola pública.
- É
justamente isso que não consigo compreender. Você é tão madura... Como foi
ficar assim, menina?
-
Assim como? Eu enxergo além, muito além. Todavia, isso é problema meu e meus
motivos para ficar desse jeito são todos frutos dessa sociedade
distorcida. Admito, essa foi uma boa
tentativa de penetrar na minha mente, mas, infelizmente, acho que não irá
funcionar comigo. Portanto, desista.
-
Está bem, mas quando você quiser se abrir comigo, estarei à sua disposição.
-
Pode esperar deitada e já desfrutando de um bom sono. Já é muito o fato de
estarmos conversando. Dê-se por satisfeita.
-
Alice, você tem personalidade antissocial. Tens consciência do que isso
acarreta? Estou aqui tentando ajudá-la! Deixe-me fazer meu trabalho! Você é a
pessoa mais fechado que conheço.
- E
você é a pessoa mais vazia e fútil que já conheci. Comprando títulos e vendendo
diagnósticos precipitados.
Minha
voz se inflama e Narcisa parece desconfortável em sua poltrona vermelho sangue,
estofada com plumas, talvez?
- O
seu “diagbóstico” é bastante visível: sim sou antissocial! Parabéns, Narcisa!
Você fez o seu trabalho!
-
Escuta Alice...
-
Sabe de uma coisa doutora? Eu já vou indo, porque está na minha hora e
sinceramente? Os biscoitos estavam fabulosos. Adeusinho!
Saio
da sala com um sorriso cínico, o mesmo o qual todos somos condicionados a usar. Sinto-me
satisfeita hoje e acho que minha terapeuta descobriu algumas coisas sobre ela
mesma.